Amelie...
Olha que coincidência... (????)
Ontem eu assisti pela enésima vez ao filme "Le fabuleux destin d'Amelie Poulain" ou o Fabuloso destino de Amelie Poulain(em Português). Amo esse filme, o tema, a fotografia, a direção, a trilha sonora, enfim, tudo...
Fiquei lembrando que minhas sobrinhas e alguns amigos me acham muito parecida com ela, às vezes até me chamam de Amelie e tal..
Pois é..
Hoje, enquanto dirigia para o trabalho, aconteceu algo muito engraçado.. No som do carro, estava tocando o cd da trilha do filme, a faixa "Comptine d'un autre ete, l'apres midi", para ser exata. Nesse momento, um rapaz em outro carro falou para mim: "Amelie, me leva para Montmartre com você.."
Só consegui dar uma risada e fazer um cumprimento como se dissesse: "Vamos lá.." :0)
E segui, sem mais delongas..
Estava vindo de uns dias de crise existencial(muito comuns em minha vida), uma fase muito triste, melancólica e esse episódio me fez rir naturalmente, me trazendo uma leveza que me deixou muito bem..
Mas pensei: "Putz.. Que coisa... Ontem assisti mais uma vez a esse filme, agora está tocando o cd do filme, e esse cara me fala uma coisa dessas! E tudo de repente..."
Essa vida é louca mesmo, viu....
Ou não... rs..
Depois disso tudo, lembrei desse texto do Jabor:
Hoje, só as bestas quadradas serão felizes – Arnaldo Jabor
Fui ver o filme Amélie Poulain, que está estourando nas bilheterias mundo afora.
Disseram-me que era "esperançoso, um refrigerio para o aterrorizante mundo atual". Armei-me de pipocas e mergulhei no escuro. Adorei. O filme é uma perfumaria , mas eu amei. Durante duas horas, esqueci de mim mesmo. E descobri a verdade inapelável: eu quero, eu preciso me "alienar", como se dizia antigamente.
A "alienação" virou uma necessidade social. O filme é uma fábula simpática de uma "neo-Poliana", uma chapliniana mocinha cheia de compaixão, que modifica a vida dos fracassados e infelizes.
Saí do cinema pensando: Amélie, eu quero ser outro. Não quero ser mais eu. Eu não me agüento mais, quero me "alienar", virar, se necessário, uma besta feliz. Eu fazia filmes, mas a vida me levou a virar jornalista, profissão que adoro, mas que me obriga a uma incessante observação do dia-a-dia, fazendo-me amargurado, num crescente rancor por um país que não se conserta, como queria minha geração romântica.
Por isso, Amélie Poulain, venha me modificar, me faça sorrir alvamente, me traga a baba dos idiotas, venha Forrest Gump, me vidre os olhos de parvoice, venha Prof. Pangloss, me ensinar a cultivar o jardinzinho dos babacas.
Enquanto milhões de árabes se acotovelam em Meca, unidos na única certeza de Alá, nós estamos sós. Não temos Alá; só temos o cinema americano, nossas religiões são ralas, não nos prostam a rezar para Meca, como lagartixas felizes cinco vezes por dia; vivemos dentro da angustiante democracia liberal, que nos amaldiçoa com esta liberdade inútil.
Por isso, Amélie Poulain me inspirou uma lista de conselhos de auto-ajuda para nos devolver uma abjeta e deliciosíssima felicidade neste mundo sinistro.
Eia! Avante, românticos sofredores, cidadãos nostálgicos do Bem, aqui vai um Alcorão substituto, um guia de sobrevivência na selva global. O princípio básico é o “Não” - a negação de evidências, a técnica de nada ver, a “conduta de evitação”, como fazem os fóbicos.
“Não” olhar a miséria nas ruas, evitar os menininhos nos sinais cariocas, principalmente a nova invenção dos pequenos desgraçados, fazendo malabarismos com três bolinhas para ganhar esmola, menininhos esfarrapados diante de BMWs indiferentes.
“Não” olhar mães com nenéns no colo nos meios-fios e, se por acaso, entrarem em nosso campo de visão, imediatamente convocar a moral de classe média de que “essas mães podiam trabalhar, mas não o fazem por preguiça de enfrentar um tanque de roupa”.
“Não” ver noticiários, nem ler os jornais ácidos e veristas; não ver, por exemplo, os desgraçados sem-teto que serão expulsos à bala no Pará, enquanto o Jarbas Barbalho tem habeas-corpus. Diante da injustiça, blindar-se, lixar a alma, laquear o coração.
Mas, não pensem que somente a “alienação” é um bom procedimento. Podemos ser felizes também com “ideologias”.
Por exemplo, diante da tal “globalização” da economia, podemos ter duas atitudes. Uma, é acreditar, lívidos de certeza, que o livre mercado vai tirar o homem de suas dores e que a riqueza choverá sobre os emergentes, como festas da uva. Esperança neoliberal. Ou, então, cheios de entusiasmo, como em Porto Alegre, acreditar que homens e mulheres com camisetas de Guevara e tocando o tambor de Mercedes Soza ou com as “veias abertas” de amor pela América Latina, como Galeano, conseguirão reverter a exclusão e a fome, apenas pelo dom mágico das palavras de ordem. Esperança de “esquerda”.
São as delícias do auto-engano: nas duas posições, de olhos vidrados, arfantes de certezas, evitaremos o incômodo de ver a evidente vitória do capitalismo mais bruto.
Dica de felicidade: esquecer a Arte. Isso mesmo. Essa tal de “Arte” que sempre nos evocou um ideal de harmonia, essa saudade da natureza da qual nos exilamos, essa fome de eternidade tem de acabar de uma vez por todas. Abaixo Bach, Goya, Shakespeare, Rimbaud e toda uma lista negra de velhos idiotas. Devemos nos banhar nos filmes americanos, nas audições de axé music, de pagodes e raps, de bundas e garrafas, até o momento em que, tomados pela revelação pós-moderna, exclamarmos em lágrimas: “Sim, sim, Schwarzenegger, sim, techno music, sim Celine Dion, sim Phillipe Starck, sim Grisham, sim, eu vi a luz! Aleluia!"
Outra dica: tirar da cabeça o velho hábito ocidental do criticismo. Aceitar tudo que nos é oferecido, com lábios trêmulos de gratidão: “Sim, sim, Silvio Santos, sim, Ratinho, sim, Edir Macedo, sim, obedecemos...”
Há muitas formas de ser feliz. Pode ser pela adesão ao princípio do “"melhor dos mundos”, das pequenas maravilhas do cotidiano: “Ohh... como é belo o amor à vida que esses favelados têm...” ou por uma transposição fatalista meio oriental : “Ohh... esta enchente que matou 200 estava escrita - deve ter um lado bom...”
Também é possível ser feliz pela entrega total a uma infelicidade, a um pessimismo absoluto tipo Cioran, pela deliciosa alegria dos céticos, pelo desprezo pela vida lá fora. Sem esquecer os “militantes imaginários” que torcem pelo “bem do Homem”, como pelo Palmeiras, com a consciência limpa, em casa, de pijama.
Meus mandamentos de felicidade atual não caberiam neste artigo. Mas as regras básicas são: esquecer os outros e só atentar para si : “Eu sou mais eu..”
Entregar-se ao consumo: “A felicidade é meu jeans Calvin Klein.”
Entregar-se ao narcisismo radical: “Não há popozuda mais siliconada na Avenida.”
A busca da ignorância mais negra: “Não me venha com papos-cabeça!”
Ou mesmo a adesão ao mais remoto feudo-cabeça: “Fora Mallarmé, o resto é lixo...”
E só assim, “alienados”, com os olhos bem tapados, com o coração lacrado, com o cultivo da estupidez, com a devoção à baba elástica e bovina dos imbecis, poderemos chegar à revelação final e, num rasgo de felicidade, amar para sempre a beleza do excremento!
Tenho minhas restrições a algumas coisas que o Arnaldo Jabor escreve, mas esse texto, além de citar o filme em questão, e por isso me fez lembrar dele(do texto), discorre sobre um tema muito interessante e com o qual concordo em gênero e número.
Definitivamente é desesperador esse panorama da realidade em que vivemos. E como é raro conhecer pessoas como a Amelie, que se põem disponíveis para tentar melhorar, de alguma forma, a vida das outras pessoas que a cercam..
O Jabor soube traçar um retrato dessa total alienação, dessa globalização asquerosa, consumista e cruel, ou como eu preferiria dizer, dessa disseminação de pessoas “normóticas”. Claro que construiu seu texto de uma maneira irônica, porquanto não poderia ser diferente, ou correria o risco de parecer “careta”, ou ultrapassado, mas ao mesmo tempo, mostra, subliminarmente, que nem tudo está perdido, ou que pelo menos devemos lutar pela busca de uma felicidade nossa, interna, pessoal, no meio desse mundo sinistro, angustiante e que só venera o consumo, o narcisismo e a ignorância.
Mas sempre me surge uma dúvida:
Será que ser uma "besta", consumista, narcisista e ignorante, enfim, um normótico, não seria melhor?? Nesse caso, não precisaria encarar nenhuma luta, não seria necessário encarar os olhares dos outros censurando seu jeito de vestir, de ser, de pensar, de agir, de trocar certas situações confortáveis por outras mais complicadas, por cogitar começar tudo de novo, etc... Era só se adaptar ao comum, à moda e entrar na "onda"... Simples assim.. Seria muito mais fácil, não é mesmo? Talvez...
Mas é um fato... Na minha humilde opinião, paga-se um preço muito alto por ser igual, padronizado... O preço de perder o que você realmente é. De se tornar o mesmo, o outro..Na verdade, conseguir ser diferente e singular nesse mar de rótulos e padrões não é uma luta, é uma guerra!!
Insana!!
Mas que vale muito a pena... Pois só dessa forma, você pode saber quem você é... Assim saberá que não se parece com mais ninguém.. E que portanto não deve nada a ninguém, não está plagiando ninguém, pois aquilo que é seu, que você faz, que está em você só pertence a você... Ser quem você é te dá mais coerência e tranquilidade, para saber aceitar um erro cometido e pedir desculpas, e ficar satisfeito e feliz quando receber um elogio e agradecer. Isto é, quando você se desculpa, foi por um ato seu, só seu, e quando agradece, agradece por você, só por você.. Para mim, esse ainda é o ponto mais próximo que alguém pode chegar da verdadeira liberdade. E isso é ótimo!!! :oP
Bjo.
Música: Comptine d'un autre ete: L'apres midi da trilha do filme O Fabuloso Destino de Amelie Poulain.