Saramago
Saramago questiona a ilusão do mundo democrático
Paris – O escritor português José Saramago deve desembarcar no Brasil apenas em novembro para o lançamento de seu último livro, “Ensaio sobre a lucidez” (Companhia da Letras, 2004).
A obra, que gera polêmica na Europa, traz a história de um país imaginário onde os votos das últimas eleições não se dividiram entre partidos da direita e da esquerda, como de costume. Naquela ocasião, para espanto de todos, venceu o voto em branco.
O questionamento de Saramago sobre o processo democrático evolui para a análise das reações do governo, na polícia e da mídia depois do pleito. Após um suspiro autoritário, fica mais clara a alegoria que o autor apresenta sobre a fragilidade dos rituais democráticos, do sistema político e de suas instituições. "Ainda estou sofrendo as conseqüências deste "Ensaio sobre a Lucidez"", brincou Saramago, em entrevista concedida na capital francesa.
"Em Portugal foi um escândalo. Nas duas semanas seguintes à publicação, saíram mais de 40 artigos, publicados pelos conservadores de direita, atacando o livro, sem mesmo o ter lido. Atacavam o autor dizendo que eu queria destruir a democracia.
"Um articulista disse que não era de se surpreender, pois eu era stalinista", afirmou o português, rindo. "Na verdade, todos entraram em pânico".
Segundo comentário divulgado pelos editores da Companhia das Letras, o que Saramago propõe não é a substituição da democracia por um sistema alternativo, mas o seu permanente questionamento.
É através da ficção que Saramago "entrevê uma saída para esse impasse - pois é a potência simbólica da literatura que se revela capaz de vencer a mediocridade, a ignorância e o medo".
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Pergunta - Qual é sua crítica quanto à democracia atual?
José Saramago - Problemas como a globalização e a guerra têm de ser vistos, do meu ponto-de-vista, a partir de uma questão política fundamental, que é a democracia. Porque no fundo o que se passa é que todos estamos de acordo que vivemos em um sistema democrático, portanto somos cidadãos, somos eleitores, há eleições, votamos, forma-se um parlamento, e a partir desse parlamento, forma-se uma maioria parlamentar. Temos os juízes, tribunais, temos todo o esquema montado. Este esquema é formal. Mas até que ponto se permite que esse sistema seja substancial? Vivemos dentro de uma bolha, que eu chamo de bolha democrática, onde tudo funciona perfeitamente.Estamos aqui hoje em Paris, mas podíamos estar em Lisboa, ou São Paulo, ou Rio, e sabemos que a sociedade funciona de uma certa maneira. O que é o funcionamento das instituições democráticas, isso chega até onde? Chega até a capacidade do cidadão de eleger um governo. Se não está satisfeito com este governo, nas eleições seguintes pode tirar este governo e por outro, que isso traz mudanças sim. Mas mudar de governo não significa mudar o poder, e este é o drama da democracia. Para dar um exemplo muito simples, nós sabemos que vivemos hoje voltados para o mercado de trabalho. Mas vivemos hoje em uma situação de emprego precário, misticamente designada de mobilidade social.Minha pergunta é esta: dá para acreditar, para usar uma expressão brasileira, que algum governo no mundo se sentou para deliberar, e algum ministro teve a idéia, de acabar com a idéia do pleno emprego, e passar para o emprego precário? É completamente impossível. Eu não acredito que nenhum governo tomou esta decisão. No entanto, o emprego precário existe no mundo inteiro, ninguém tem segurança no emprego, pode acontecer que hoje uma pessoa tenha o seu, e amanhã já não o tenha. Esta é hoje a realidade do mercado de trabalho. Portanto, da onde veio esta necessidade de transformar a idéia do pleno emprego naquilo que é hoje o emprego precário?Evidamente, veio de cima, quero dizer, veio do poder econômico, a quem não convém existir segurança no trabalho, a quem não convém continuar com suas fábricas instaladas em países com exigências quanto ao horário de trabalho e a salários altos. Vão colocar suas fábricas nas Filipinas ou na Indonésia, onde essas exigências não existem, onde não há sindicatos, e as pessoas trabalham 10 ou 12 horas por dia. Portanto, se é assim, chegamos a uma situação preocupante. Os governos que elegemos, no fundo, são correias de transmissão das decisões e das necessidades do poder econômico, e os governos não só funcionam como correias de transmissão, mas também como os agentes que preparam as leis, como as que levam ao emprego precário.O drama está aí. O poder econômico sempre existiu, o poder político sempre esteve ligado a ele, sempre existiu um concubinato entre esses dois poderes. Mas os cidadãos estão aqui embaixo. E como eles poderiam expressar suas angústias, dúvidas e necessidades junto a este poder econômico? Em príncipio, seria através do mesmo governo que serve de correia de transmissão. Mas não podemos ter qualquer esperança de que esses governos digam ao poder econômico, representado hoje pelo FMI, que as condições que vocês nos impõem são terríveis. Há um problema, que na minha opinião, é fundamental da democracia: ou ela transcende o poder da tal bolha que falei, tendo uma ação fora dela, ou vamos continuar a viver na ilusão do mundo democrático.Nós vivemos numa plutocracia, um governo dos ricos, e são eles que governam. Aristóteles dizia que em um governo democrático, os pobres deveriam ser maioria, porque são em maior quantidade que os ricos. Dizia ele, inocentemente, que era só uma questão de respeitar a proporção. Mas isso já aconteceu alguma vez? Claro que não. Se criarmos um partido pobre, ele não duraria muito tempo, porque um partido pobre não tem muita coisa para prometer.
Pergunta - A solução pode vir dos movimentos sociais?
JS - Não, os movimentos sociais não avançam todos na mesma direção, ao mesmo tempo, para reinvidicar a mesma coisa. Sabemos que não é assim. Mas temos que levar em conta que o poder econômico está organizado. Os movimento sociais não aparecem juntos. Claro que propõem alternativas, isto é o mais fácil, mas enquanto elas não forem colocadas à prova, não sabemos o que elas valem.
Pergunta - Como o senhor vê a Revolução dos Cravos, cujos 30 anos são celebrados neste ano?
JS - A Revolução tinha um projeto. Havia o que podíamos chamar, para a primeira Constituição, de um projeto de socialismo claro. Mas não ficou nada disto. Hoje em Portugal podemos comemorar a revolução que acabou com a ditadura fascista e nos trouxe a democracia, mas evidentemente tenho de acrescentar que não ficaram rigorosamente nada daquelas idéias de transformações sociais. E, pior ainda, digamos que passamos de um momento histórico da vida portuguesa, onde as pessoas eram capazes "de construir seu próprio futuro" para um momento de apatia total.
Cara, Saramago é genial.. Brilhante.. Que idéias fantásticas..
Não ganhou o Nobel à-toa..
Bjo.
Música: Karelia do Anekdoten.
Um comentário:
Realmente fantásticas idéias. Mesmo sabendo q é impossível se distanciar das ideologias q temos na cabeça, como um tratamento puramente científico e acadêmico exigiria, é impossível não perceber no mundo real tudo q ele fala sobre a democracia. E pensando nisso, e pq sou economista, o que substituirá democracia e capitalismo??? Bjs.
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