Carnaval
Salvador está sendo vendida há alguns anos para as pessoas de fora como sendo a cidade da alegria, da felicidade, um lugar onde as pessoas vivem sorrindo, satisfeitas.. "Sorria, você está na Bahia.."
E não tem como negar. Salvador é uma cidade linda, com pessoas igualmente lindas e hospitaleiras, com uma culinária fantástica, possuidora de uma riqueza musical inigualável e que nunca deveria ser resumida apenas ao axé music, pagode e arrocha, e que apesar desses estilos serem merecedores de respeito, certamente não são o que de melhor se produz por aqui...
Porém, Salvador está longe dessa capital cheia de felicidade, de bem estar, de uma distribuição de renda digna e, consequentemente, de uma maior igualdade social.
O povo de Salvador, e da Bahia em geral, sofre com hospitais sucateados, colégios sem a infra-estrutura adequada, com centenas de computadores, mas com professores desqualificados para usarem dessa tecnologia, pois o próprio governo não investe em aperfeiçoamento de pessoal, pontos turísticos muito bem cuidados e até mesmo vigiados 24 horas por dia, como é o caso do monumento em homenagem ao Luiz Eduardo Magalhães(filho de ACM, morto uns anos atrás), enquanto a maioria dos bairros padecem com falta de segurança, saneamento e condições básicas de sobrevivência.
E chega o carnaval... Ah... O carnaval...
E em Salvador o carnaval é considerado o "mais democrático do Brasil"... Isso soa para mim como uma piada bem sem graça...
Há uns 10 anos, poderia se dizer que o carnaval de rua de Salvador era mais democrático do que hoje. Por que? Não existiam os blocos caros e elitistas? Sim, existiam. Mas havia duas diferenças básicas. O fato do carnaval ser amador, sem fins especificamente lucrativos, sem o alto profissionalismo atual(não que isso também não tenha suas vantagens) e não existir esses intermináveis camarotes, baseados apenas em lucro econômico, que tomam um espaço imenso das ruas, deixando o mínimo somente para as pessoas que estão nos blocos passarem. Antes desses monstros chamados camarotes, esses blocos passavam e os foliões que, ou não queriam ou não podiam pagar, os conhecidos como "pipocas", tinham condições razoáveis de pular ao lado daqueles e curtiam da mesma forma os artistas que vinham em cima dos trios.
Isso sem falar nos blocos de índio(pioneiros), que de índio só tinham o nome e as fantasias, mas que exploravam temas essencialmente afros também e que mantinham como base musical o samba, e os blocos afro propriamente ditos, com suas apresentações espremidas para horários cada vez menos expressivos, sempre desfilando tarde da noite e nas madrugadas.. E como isso não bastasse, cada vez são menos veiculados pelas emissoras de TV. Os blocos afro são o que se tem de mais representativo em termos de carnaval de Salvador. O valor cultural e social dessas entidades qualquer bucéfalo saberia reconhecer, mas será que elas teriam valor comercial, dariam lucro, renderiam "dindim" para os famintos investidores??? Fica aqui minha inocente dúvida...
Felizmente, ainda há redutos de resistência de uma qualidade musical perdida no tempo(e aqui não se trata de nostalgia, e sim de um fato), como é o caso do trio de Armandinho, Dodô e Osmar, que sempre sai como trio independente só para o público pipoca.. Assim como o mais recente Expresso 2222 do Ministro Gilberto Gil, mantendo um resquício de qualidade musical e dessa tal democracia tão proclamada, mas raramente praticada... Espero que eles nunca deixem de participar do carnaval daqui por falta de patrocínio, como aconteceu com muitos outros trios, e com artistas que são simplesmente esquecidos por não estarem superexpostos na mídia.. Se até o Carlinhos Brown reclamou de patrocínio... Imagine....
Mas ces't la vie... Nessa época de carnaval, parece que as pessoas se esquecem das suas verdadeiras realidades e participam dessa manifestação de consumismo descarado, de uma comercialização selvagem do tradicional, de uma vergonha cultural, sem a menor reflexão, muito menos pudor, de que quando acabar essa antológica e perversa encenação do Pão e Circo(e nesse palco, mais para Circo, óbvio), tirarão a fantasia, guardarão na gaveta e encararão a realidade nua e crua, sem maquiagem. Contudo, se isso tudo acontecesse, ou seja, a curtição e a alienação ocorressem ali, pontual e temporariamente, mas depois as pessoas conseguissem perceber claramente o engodo "quase" que intencional para o esquecimento dos problemas reais e cotidianos, e reagissem de uma forma mais consciente e coerente, seria tudo muito mais compreendido e até incentivado, pelo menos por mim.
Mudando de assunto, mas nem tanto... Hoje, precisei levar mais uma vez umas pessoas que estavam em minha casa à praia( e já vou deixando meu protesto aqui: amo quando meus amigos vêm para minha casa, adoro levá-los para todos os lugares bacanas de Salvador, mas POR FAVOR, não me façam acordar cedo para ir para praia, porque eu ODEIO praia, sol, sal etc... Definitivamente, praia não é a minha cara, OK?? rs.. ) .
Lá encontrei Carlinhos*, um menino lindo, mas com o olhar triste de quem não pode usufruir de todos aqueles direitos elencados lindamente no ECA. Carlinhos, o menino da foto, certamente não vai pular carnaval, nem ganhar uma fantasia, nem confetes nem serpentinas. Porque ele vai trabalhar na praia, como faz todos os dias, vendendo amendoim para ajudar a mãe a colocar comida na mesa. Assim como Carlinhos, milhares de soteropolitanos trabalham numa época em que a grande maioria se diverte. Nada de desonroso em ganhar dinheiro com o carnaval, mas nada de democrático também.
O Carnaval de Salvador só será o mais democrático do Brasil, quando o povo, no seu cotidiano, tiver mais dignidade e condições básicas e igualitárias de sobrevivência.. Enquanto isso, o carnaval vai continuar focado somente para os autóctones privilegiados que possuem dinheiro para pagar até $ 3.000,00 num abadá ou $200,00 para poder ter acesso a um camarote e para os turistas que vêm para Salvador em busca de diversão.
Por outro lado, ainda lidamos com questões trabalhistas lamentáveis, como as que ocorrem com os cordeiros de blocos.. Trabalham durante 6 a 8 horas por dia, geralmente sob um sol escaldante, com direito a um vale-refeição, o que muitos reclamam de não receberem, para ganhar no máximo $15,00(esse foi o maior valor pago a um cordeiro no carnaval de 2006) e sofrerem todo o tipo de agressão, uma vez que ficam completamente vulneráveis pois precisam defender os "associados" de dentro dos blocos contra os "marginais" que estão do lado de fora.
Enfim, o carnaval de Salvador virou atração para Inglês ver....
Estamos seguindo os passos do carnaval do Rio, infelizmente..
Claudia Fernandes
* Carlinhos é um nome fictício.
Bjo.
Música: Todo Carnaval Tem Seu Fim - Los Hermanos.