"Ah! imagina só que loucura essa mistura
Alegria, alegria é o estado que chamamos Bahia... "
Será??
Como não tenho mais coragem e nem saco de encarar um bloco ou a pipoca, e nem podia viajar, resolvi fazer algo que só fazia quando criança, acompanhar a transmissão do carnaval pela televisão.E devo confessar que um sentimento muito forte se manifestou em mim. A Emoção. Emoção esta que era um prenúncio de que algo muito maravilhoso estava acontecendo nesse carnaval.
Preciso fazer uma digressão, porque me lembrei de quando era bem novinha. Sempre fui muito ligada à minha família, principalmente às mulheres mais idosas, avó, tias-avós e bisavó, sempre presentes em minhas brincadeiras de criança e com quem conversava por horas. E hoje agradeço a essas longas e divertidas conversas, pois creio que adquiri muito conhecimento que guardo e me serve até hoje.
Dessa época, lembro de que elas falavam das escolas de samba de Salvador. É, nós tínhamos escolas de samba sim. De como eram bonitas. E de como foram umas das primeiras representações de um carnaval genuinamente de rua. Do primeiro afoxé, a Embaixada Africana, com homens negros lindos, vestidos ao estilo africano. Da velha fobica de Dodô e Osmar, e de como eles saíram tocando paus elétricos arrastando uma massa enlouquecida. Dos "caretas" com fantasias bem coloridas. E outras memórias que me faziam viajar.
Lembro-me ainda que assistíamos todas juntas, na sala, às transmissões de carnaval. Era uma aula. Primeiro, porque elas sempre foram humanistas, e usavam as imagens do próprio carnaval para ilustrar cada comentário feito. Apontavam sempre para a segregação gritante, para a barreira que o governo interpunha entre o povo das ruas, que faziam protestos, que mostravam sua cultura e o povo das salas, que assistiam apenas ao que eles deixavam. Segundo, porque elas adoravam os bailes gays que aconteciam nas madrugadas. Com isso, procuravam me mostrar que todos somos seres humanos e podemos nos manifestar de várias formas. Isso para mim, era sinônimo de aprendizado e, ao mesmo tempo, diversão garantida. E quando a coisa esquentava demais: "Olha para lá, Claudinha.", "Isso você não pode ver, menina." Não precisa nem dizer que eu não obedecia..
Claro que nada, em tempo algum, é perfeito, mas como era romântico o carnaval daquela época..
Até os blocos de trio, hoje marcadamente sem personalidade, padronizados, comerciais e racistas, eram bonitos, com macacões ou mortalhas com desenhos especiais, desenhados com esmero, com arte, eram blocos leves e pretendiam, antes mesmo de ganhar grana, levar diversão, juntar uma galera e sair para beber e farrear. Lembro dos Amigos Da Vovó e o Comunicação(da Ribeira), Os Internacionais(bloco só de homens, belíssimo, do qual meu tio Zé era sócio), os Traz os Montes que revolucionou colocando equipamentos transistorizados, retirando a percussão que ficava do lado do trio e levando uma banda para cima do caminhão, e outros tantos.
E lembro muito bem, durante anos, delas apontando esses blocos de trio que passavam de dia e falando revoltadas: "Só tem branco!", "Parece que estamos na Suiça!", "Isso não é a realidade!","Antigamente todo mundo brincava nas ruas.", "Estão abafando as manifestações afro.." E só bem tarde da noite, quando não havia mais pessoas nem nas ruas nem em frente às tvs, para assisti-las e ter noção de sua mensagem, essas entidades afro de que minhas nonas falavam, saíam às ruas, pelo simples prazer de desfilar, protestar, e de confirmar sua negritude, cultura e beleza. Entidades da magnitude cultural do Ilê Aiyê, Male de Balê, e Badauê eram renegados a segundo plano, restando-lhe apenas o horário da madrugada no espaço “doado” como se fosse um favor. Antes disso, os afoxés exibiam-se na Baixa dos Sapateiros, Taboão, Barroquinha e Pelourinho, enquanto os grandes clubes desfilavam em áreas mais nobres, e em clubes como Os Fantoches da Euterpe, o que já era um prenúncio da tendência que essa festa iria tomar. Para os compadres tudo! Para o povo, nada!
Era óbvio que tudo estava muito errado.
Por anos esse fato se repetiu. Fiquei adulta e via, com revolta, no que o carnaval da Bahia vinha se transformando. A imprensa e as tevês, descaradamente, por motivos que todos sabemos quais são, privilegiavam a cultura hegemônica, a que tocava nas rádios, a que aparecia na televisão, enfim, aquela que vende e dá dindim. E ainda para piorar, devia considerar o povo um bando de idiotas, porque a transmissão era uma piada. Só era veiculado as entidades que mantinham uma troca de favores com o poder. Por exemplo:
"Sei que rolou violência!”
"Quero poder escolher ouvir ROCK no carnaval também!" e
Mas nada está perdido, ou creio que não. No primeiro dia de carnaval deste ano, levei um susto bom, muito bom.
Estava eu, como disse no início, assistindo à transmissão da festa momesca, meio que sem a menor animação, nem esperança de qualquer novidade. Foi quando senti algo que me marcou.
A sensação lá no fundo do peito de que alguma coisa poderia estar mudando e como todo despertar para uma coisa boa, veio imbuído de uma emoção forte.
Que me desculpem as outras emissoras, que até tentaram, ou não, mostrar um pouquinho de tudo, mas a TVE, a tevê educativa da Bahia, foi instruída a transmitir sem medo, sem cortes, e com absoluta preferência, as manifestações espontâneas, a multiplicidade de culturas, a diversidade, que é uma marca da Bahia e que vinha caindo no obscurantismo. Resumindo, mostrar a cultura afro-baiana, com os blocos afro, os afoxés, blocos de reggae, etc.. Mas o que mais me emocionou, foram os blocos de samba, antes completamente jogados ao ostracismo, e por esse motivo, desconhecidos pelo grande público.
Nesse dia, a emoção me tomou o ser, mas em 3 ocasiões específicas, me pegou de jeito. Começou com a passagem do Alerta geral. Bloco de samba, ritmo mais genuinamente brasileiro, e que era criminosamente deixado de lado no carnaval, desfilou com elegância, com milhares de foliões, trazendo Beth Carvalho, Arlindo Cruz, Dudu Nobre e outros, muito lindo.
O bloco Coração Rastafari entrou depois, tocando seu reggae de raiz, com letras fortes, com Lazzo Matumbi entoando sua bela voz. E olha, que o bloco quase que não sai por falta de incentivo, assim como muitos outros.
O Bankoma veio para me tirar lágrimas dos olhos. Bloco lindo de se ver, desfilou com altivez e muita beleza. Confesso que mesmo tendo morado por 8 anos em Lauro de Freitas, e sempre ensinado em escola do estado por lá, nunca ouvi falar dessa entidade. Para mim, uma surpresa emocionante.
Outro bloco de samba, o Amor e Paixão passou pelo Campo Grande majestoso. Coisa linda. Vestidos de vermelho e branco, os integrantes do bloco mostraram samba no pé o tempo todo, liderados pelo samba empolgante de Nelson Rufino..
Sem falar nos Filhos de Ghandi, que sempre trazem uma mistura de paz, tradição e, na minha opinião, muita sensualidade. O Cortejo Afro, belíssimo em toda sua diversidade, levando este ano também a causa dos albinos para as ruas. Os Mascarados, maravilhoso, com as pessoas fantasiadas, felizes, e onde aquela velha frase do Tim Maia: "Só não pode dançar homem com homem, nem mulher com mulher" não rola, graças a Deus; e outros eventos que mostraram que o carnaval da Bahia não é feito só de blocos de trio.
E pensar que samba vem da corruptela semba que significaria para uns Umbigada e para outros, Tristeza, Melancolia ou Banzo, creio que o carnaval já escolheu o seu significado preferido.
Bjo.
Quem quiser uma visão mais direta e racional sobre o carnaval, veja aqui no blog do Zé:
Música: Chame Gente do Moraes Moreira com Armandinho.