Tudo começou assim de repente, numa noite como outra qualquer. Não, não era uma noite de sexta-feira. Todas as noites de sexta-feira são alegres por natureza, por assim dizer.
Também não era uma noite de domingo, que são típicas noites de desalento. É usual dizer-se que as noites de domingo, assim como as manhãs das segundas-feiras, servem de abrigo a um universalmente reconhecido mal-estar, o famoso “bode”, também conhecido como “síndrome-do-retorno-ao-trabalho”.
Era, na verdade, uma noite de terça-feira e as noites de terça não têm nada de especial. Nada de especialmente alegre ou triste.
Acabara de chegar em casa. Chovia e fazia frio naquela noite, estava encharcado.
Vindo do trabalho passara no supermercado e, naquele momento, colocava as compras na geladeira. Foi aí que, não sei porque, invadiu-me uma estranha sensação de plenitude, uma estranha sensação de liberdade e alegria.
E, de repente, comecei a falar sozinho. Na verdade, ralhava com não sei quem, com um certo personagem invisível, imaginário, como às vezes faço no supermercado, como quem reclama dos preços ou algo assim: “Olhe lá, veja bem!”. “Hum!”. “Que absurdo isso!”. “Que coisa!”. “Será o impossível!” – dizia num peculiar solilóquio que se seguiu por mais alguns breves minutos coroado por uma gargalhada. Coisa de “esquizo” mesmo.
“Que se danem os vizinhos” – pensei. “Que pensem que sou doido. E daí!?” – arrematei.
E gargalhei gostosamente. Que sensação prazerosa de liberdade senti! Liguei o som e coloquei um CD de música eletrônica (mas não esse bate-estaca que pulula por aí) em alto volume, mais especificamente Prodigy e a música Funky Shit (quem conhece sabe a “doideira” que é). Mas também poderia ser um bom jazz, um bom rock (tipo Led Zeppelin ou mesmo Nirvana) ou música clássica, MPB, sem problema, aí vai ao gosto do freguês, pra não ficar só no modismo da música eletrônica, sabe como é...
Então, dancei e dancei e dancei loucamente, pulando e agitando os braços num frenesi estonteante. Dancei até o completo esgotamento quando, exausto, deitei-me na cama e entreguei-me à leitura de alguns poemas de William Carlos Williams. Até que Morfeu e algumas ninfas levaram-me, braços dados, ao mundo dos sonhos.
Ao acordar, já na manhã do dia seguinte, sequer percebi, mas ainda estava contaminado por aquela idiossincrática e “gratuita” alegria. Sim, decerto, alguns (talvez muitos) considerariam aquela alegria “gratuita”.
Naquela manhã nem me importei com o horário (e olhem que já estava atrasado!). Caminhei com alegria, leveza e boa vontade rumo ao trabalho, dando bom dia aos passantes que me olhavam entre assustados, incomodados e incrédulos.
Diferente das cidades do interior, nas grandes metrópoles as pessoas não se cumprimentam de maneira cordial e simpática.
Já no metrô permiti, como um cavalheiro, que as mulheres embarcassem primeiro, à minha frente, no vagão. Sorria gentilmente a todos que me olhavam e cumprimentava os que me retribuíam o gesto. Dava-lhes um bom dia, ou um simpático “olá!”.
Não me incomodei com os olhares de censura e reprimenda de alguns poucos. Tudo bem. Desvencilhei-me do vitupério e da agressão de um jovem que me flagrou sorrindo para a sua bela namorada. “Esses moços, pobres moços, ah se soubessem o que eu sei”.
Aquela estranha e injustificável sensação de alegria foi me tomando num crescendo tal que me fez lembrar da Bahia (sou baiano e, creio, todos já o sabem).
Lembrei-me da alegria e da gentileza e hospitalidade do povo baiano (mesmo com tanta pobreza a lhes envolver e sufocar). Lembrei-me do seu carnaval – que os maledicentes e/ou invejosos dizem que se “restringe” a todos os dias do ano. Pobre e alegre, incompreensivelmente alegre, povo baiano.
Aquela estranha e injustificável sensação de euforia foi me tomando num crescendo tal que me fez lembrar mesmo da Bahia, repito, do seu carnaval de uns 15 anos atrás.
Fez-me lembrar do Ilê Ayê, um bloco afro bastante conhecido e hoje festejado por todos; lembrar da sua batida, sua majestosa e radiante evolução na avenida (à essa época o carnaval da Bahia não era tão comercial como é hoje).
Lembrei-me de quando eu, ainda um jovem loiro, filho da elite branca, metia-me em meio à beleza negra do Ilê, dançava e integrava-me (e entregava-me) à folia, como se um negro fosse, ou um gringo intrometido, mas bem acolhido, e cantava com devoção: “Não me pegue não me toque/ por favor não me provoque/ eu só quero é ver o Ilê passar(...) Quero ver você Ilê Ayê/ passar por aqui/ Quero, quero, quero, quero ver...”.
De repente, peguei-me, ainda no vagão do metrô, cantando essa inesquecível música do Ilê. Coisa mais bonita de se ver é o Ilê.
Ao descer do vagão do metrô, já não desci, acredite, na estação Bresser do metrô, aquela em que desço todos os dias, todas as manhãs, rumo ao trabalho. Desci, sim, em pleno carnaval da Bahia, em meio ao “mundaréu” de foliões e “passistas” do Ilê, que se misturaram à multidão de passageiros e passantes que desciam ou entravam no metrô.
E dancei com eles. Dancei feliz e loucamente, como uma criança (só os loucos e as crianças experimentam essa sensação com tamanha volúpia), envolvido por uma vertigem de alegria e pelos batuques da percussão que ressoavam em minha mente: “Quero ver você Ilê Ayê/ passar por aqui/ Quero, quero, quero, quero ver/ (...) Quero ver você Ilê Ayê passar por aqui”.
Aquela alegria, o som dos tambores, o alarido do passageiros, dos passistas, dos passantes e uma vertigem, um arrebatamento primal, aquilo tudo foi envolvendo-me de tal forma que cheguei ao seu paroxismo, a uma espécie de êxtase e ... transcendi, apaguei.
Confesso que não cheguei a reparar nos olhares de assombro, desconforto, medo e/ou recriminação dos demais passageiros e passantes, involuntários partícipes daquela minha louca, voluntariosa, vertiginosa, incômoda e inoportuna alegria.
Portanto, também não cheguei a ver os seguranças quando estes me arrastaram, sob os olhares compadecidos e apaziguados desses mesmos demais passageiros e passantes, e arrastaram-me até uma viatura, que por sua vez me conduziria à ala de psiquiatria do conceituado Hospital das Clínicas (lembre-se que hoje moro em São Paulo e não mais na Bahia do Ilê, dos carnavais e alegrias outras).
Só me lembro de, ao acordar, ainda um tanto cansado e sonolento, deparar-me com os olhares de alguns senhores que me pareceram médicos e enfermeiros, a depreender-se das suas vestes brancas, em um ambiente que para mim, até aquele momento, era absolutamente estranho, desconhecido.
Ao que um deles perguntou-me com uma voz doce, delicada:
– “Tudo bem? O que o senhor está sentindo?”
– “Alegria” – disse-lhe .
Esse é o Lula Miranda de sempre...
Bjo.
Música - Stationary traveller do Camel.
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